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As origens da Igreja Cristã: De Jerusalém a Éfeso (parte 02)


    A Igreja primitiva não teve como centro espiritual a cidade de Roma, como se costuma afirmar com base em tradições posteriores. Na verdade, ao analisarmos a linha do tempo da expansão do cristianismo no primeiro século, vemos que a liderança e influência da Igreja migraram de forma natural, sempre impulsionadas pela ação do Espírito Santo e pelas necessidades missionárias. Começando em Jerusalém, passando por Antioquia e se consolidando em Éfeso, a história mostra que Roma não foi, em nenhum momento daquele século, a sede doutrinária ou espiritual da fé cristã. Pelo contrário, os apóstolos atuaram em outras regiões com muito mais profundidade e impacto.

    Jerusalém: o berço da Igreja e da doutrina apostólica

    Tudo começou em Jerusalém, no dia de Pentecostes (Atos 2). Ali nasceu oficialmente a Igreja, com a descida do Espírito Santo e a conversão de cerca de três mil pessoas. Liderada pelos próprios apóstolos, com destaque para Pedro, João e Tiago (irmão do Senhor), a Igreja de Jerusalém era o centro da vida cristã, da comunhão entre os irmãos e da definição doutrinária. Foi ali que aconteceu o primeiro concílio da Igreja, registrado em Atos 15, que definiu que os gentios não precisavam guardar a Lei de Moisés para serem salvos. A liderança doutrinária da Igreja estava, sem dúvidas, em Jerusalém — e não em Roma.

    Apesar disso, os primeiros cristãos ainda eram judeus e não tinham saído de sua zona cultural. Foi somente após a perseguição que se seguiu ao martírio de Estêvão (Atos 8:1-4) que os discípulos começaram a se espalhar, levando o Evangelho para outras regiões.


    Antioquia: a virada para o mundo gentio

    O próximo grande centro da fé cristã foi Antioquia da Síria. Fundada por cristãos dispersos após a perseguição, foi ali que os gentios começaram a ser alcançados em massa (Atos 11:19-26). A Igreja de Antioquia se tornou tão relevante que foi a primeira a enviar missionários — entre eles, ninguém menos que Paulo e Barnabé. Lucas diz que “em Antioquia, os discípulos foram, pela primeira vez, chamados cristãos” (Atos 11:26). O que começou em Jerusalém agora alcançava o mundo não judeu.

    Antioquia se transformou no centro de envio missionário da Igreja, algo que Roma jamais foi naquele período. Foi dessa cidade que partiram as três viagens missionárias de Paulo. E foi por meio delas que surgiu o próximo grande polo do cristianismo: Éfeso.


    Éfeso: o maior centro cristão do primeiro século

    Durante sua segunda viagem missionária, Paulo passou por Éfeso, a capital da província da Ásia (Atos 18). Inicialmente, Priscila e Áquila prepararam o terreno, discipulando Apolo. Em seguida, Paulo retornou e permaneceu ali por cerca de três anos, mais tempo do que em qualquer outra cidade. Ele ensinou diariamente na escola de Tirano, de modo que “todos os habitantes da Ásia ouviram a palavra do Senhor” (Atos 19:10).

    A partir de Éfeso, o Evangelho se espalhou para cidades vizinhas como Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia — igrejas citadas nas cartas do Apocalipse (Ap 2–3). Essa rede de igrejas nasceu da influência direta de Éfeso, que funcionava como um verdadeiro quartel-general da missão na Ásia Menor.

    Essa cidade se destacou não apenas pela ação de Paulo, mas também por quem morou ali depois dele.


    João, Maria e a autoridade espiritual de Éfeso

    Após a morte de Paulo e Timóteo, quem assumiu a liderança da Igreja de Éfeso foi o apóstolo João, o último dos doze ainda vivo. Segundo Irineu de Lyon, Jerônimo e Eusébio de Cesareia, João viveu por muitos anos em Éfeso, escreveu ali suas três epístolas e, durante o exílio na ilha de Patmos, redigiu o livro de Apocalipse (Ap 1:9). Após retornar, João continuou pastoreando a comunidade até sua morte, por volta do ano 100 d.C.

    Durante décadas, João foi o único apóstolo vivo em todo o mundo. Se Roma fosse de fato o centro da Igreja, não faria sentido que João permanecesse em Éfeso. Ao contrário, ele teria sido chamado para Roma, que teoricamente precisava de sua autoridade apostólica. Mas isso não aconteceu. João escolheu Éfeso como sua base — um indicativo claro de que ali estava a liderança espiritual da Igreja naquele tempo.

    Além disso, a tradição cristã, com base em João 19:26-27, afirma que Maria, mãe de Jesus, viveu em Éfeso sob os cuidados do apóstolo. Hoje, há até um local chamado Casa da Virgem Maria, nos arredores da cidade, preservado desde a antiguidade.


    Pedro, Roma e a tradição tardia de Irineu

    É verdade que Pedro esteve em Roma e que, segundo Tertuliano (c. 200 d.C.) e Orígenes (relatado por Eusébio), ele foi crucificado de cabeça para baixo durante o governo de Nero, por volta do ano 64 d.C. No entanto, isso não significa que Pedro tenha fundado a Igreja de Roma ou que tenha exercido ali um papel de papa.

    A primeira afirmação clara nesse sentido surge apenas com Irineu de Lyon, em Contra as Heresias (Livro III, cap. 3), escrito por volta de 180 d.C. Lá, ele declara que “Pedro e Paulo fundaram e organizaram a Igreja de Roma”. O problema é que:

    1. Esse testemunho surge quase 100 anos depois dos eventos.
    2. A carta de Paulo aos Romanos (escrita antes de 57 d.C.) mostra que a igreja já existia sem a presença de nenhum apóstolo.
    3. Em Romanos 16, Paulo saúda diversos líderes da igreja de Roma, mas não menciona Pedro — algo impensável se ele fosse o bispo da cidade naquele período.

    Portanto, a fala de Irineu reflete mais uma construção teológica posterior do que um relato factual. Ao associar Roma a Pedro, Irineu fortalece a autoridade da igreja romana contra heresias — mas não apresenta um dado histórico confiável.


    Conclusão: a liderança da Igreja seguiu a missão, não o poder

    A história do primeiro século mostra que a liderança da Igreja cristã seguiu o mover de Deus e a necessidade da missão, não o prestígio político do Império Romano. Jerusalém, Antioquia e Éfeso foram os verdadeiros polos de autoridade espiritual. Roma teve importância, mas não primazia.

    A presença de João e Maria em Éfeso, somada à força missionária que partiu daquela cidade, comprova que o centro da fé cristã no fim do primeiro século estava na Ásia Menor — não na capital do Império.

    Este artigo faz parte da série “As Origens da Igreja Cristã”:

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